A Pé Ele Não Vai Longe (2018)

•August 21, 2021 • Leave a Comment

Título original: “Don’t Worry, He won’t get far on foot”

Origem: EUA / França

Roteiro e direção: Gus Van Sant

Baseado no livro de John Callahan

Elenco: Joaquin Phoenix, Rooney Mara, Jonah Hill, Jack Black, Tony Greenhand, Beth Ditto, Kim Gordon

Mais um filme que passou despercebido pela crítica, pelo público e pelas premiações logo de seu lançamento em 2018. Uma obra do nada ortodoxo Gus Van Sant, subestimada provavelmente por retratar de forma realista e sem censura os dramas e as loucuras de um personagem “politicamente incorreto”, o cartunista americano John Callahan. 

Aos 21 anos de idade, Callahan sofreu um trágico acidente de carro que o deixou tetraplégico.  A noite tinha sido longa, com muita bebida e irresponsabilidade envolvida. Nessa altura, o jovem já havia se tornado um alcóolatra de primeira grandeza, usando a bebida como escudo para sobreviver a seus traumas, medos e angústias, fruto, segundo ele, de se sentir rejeitado por sua mãe biológica, uma professora americana-irlandesa de cabelos ruivos (isso era tudo o que ele sabia sobre ela!). Adotado por uma família com mais cinco filhos, Callahan nunca se sentiu parte daquele novo lar e encontrou no álcool uma solução para ir tocando a vida. Depois do acidente, ele se afundou ainda mais no alcoolismo, até resolver procurar ajuda. Dali, a vida do jovem vai dar uma reviravolta e ele vai descobrir no cartoon a sua alforria. Após recuperar parte do movimento dos membros superiores,  ele começou a desenhar com ambas as mãos, produzindo desenhos politicamente incorretos que tratavam de temas tabu, relacionados às deficiências e aos preconceitos.

O filme de Van Sant começa com depoimentos de pessoas que sofrem de alcoolismo, numa pegada bem de documentário, com uma câmera instável, muitos closes, cores desbotadas e um ar de crueza e naturalidade. A gente só desconfia que se trata de uma ficção por causa da aparição de Joaquin Phoenix em meio aos depoentes.

Em seguida, vemos o mesmo Joaquin Phoenix transformado em John Callahan, sentado em uma cadeira de rodas colocada em um palco, de onde ele conta trechos de sua vida antes do acidente. A partir daí, uma sucessão de flashbacks vão reconstituir a história do cartunista até aquele momento do palco. Em um estilo bem Gus Van Sant de ser, a história não é apresentada de forma linear. A montagem, que leva a assinatura do próprio diretor, é uma verdadeira colcha de retalhos, bem fragmentada, alternando depoimentos de Callahan nos vários locais em que ele contava sua história com desenhos de sua autoria, que retratam muito de sua personalidade ácida e irreverente. Entre esses espaços, está a casa de seu mentor “espiritual”, Donnie, brilhantemente interpretado por Johan Hill ( e aqui tenho que abrir parênteses para enaltecer a atuação de Hill, que nos acostumamos a ver mais em papéis cômicos). Vai ser ali que Callahan encontrará apoio e forças para se livrar do alcoolismo. Um grupo de pessoas como ele, com traumas, medos e arrependimentos, gente de vida sofrida, com personalidades e histórias bem distintas, mas que têm ali um espaço para cuspirem seus problemas, livre de julgamentos ou lições de moral. Um lugar onde não há tampouco espaço para auto-piedade. Essa é, aliás, a tônica do filme de Gus Van Sant, baseado no livro homônimo escrito pelo próprio Callahan. Nada de justificar o alcoolismo pelas frustrações, sofrimentos e traumas. Mas, ao mesmo tempo, como não? Como seguir adiante com tanto peso carregado? Com tanta dor sufocando o peito? A espiritualidade pode ser uma solução. O Callahan de Van Sant não é só vítima, não é santo, nem é só demônio. Ele é, antes de tudo, humano. Gente que erra, cai e consegue se levantar.

Destaque para a atuação de Joaquin Phoenix, que outra vez dá show de interpretação no papel de John Callahan. 

Um filme PRA PENSAR.

Tio Frank (2020)

•July 10, 2021 • Leave a Comment

Título original: Uncle Frank

Origem: EUA

Direção / Roteiro : Alan Ball

Elenco: Paul Bettany, Sophia Lillis, Peter Macdissi, Judy Greer, Stephen Root, Margo Martindale

Escrito, dirigido e coproduzido por Alan Ball (roteirista de Beleza Americana, 1999), Tio Frank é um filme bonito, delicado e bucólico sobre um homem, Frank Bledsoe (sensivelmente interpretado por Paul Bettany), que tem a vida estraçalhada pela criação quadrada e homofóbica do pai. 

A história, no entanto, é contada sob a perspectiva de sua sobrinha Beth (uma também excelente Sophia Lillis), de 18 anos, que tem no tio um amigo, confidente e “role model”. Ele, professor de literatura na NYU – New York University, é uma pessoa sensível, refinada, culta e compreensiva, bem diferente dos outros membros da família Bledsoe, presos que são às tradições e aos conservadorismos. Para a menina, tio Frank é único que valoriza seu jeito não mainstream de ser. E por isso ela decide furar a bolha e ir estudar na cidade grande, perto do tio-professor. 

O filme, que é ambientado nos anos 1970, vai então contar a história da mudança de Beth da Carolina do Sul para a cidade de Nova Iorque, onde a menina vai estudar, frequentando assim a mesma universidade onde o tio leciona. E é aí que ela vai descobrir a homossexualidade do seu tio-modelo, que vive há dez anos com o saudita Walid (Peter Macdissi), segredo guardado a sete chaves para o restante da família. Walid é, aliás, o personagem que traz leveza a essa história tão dura, com sua personalidade expansiva, doce e carismática.

Depois do segredo revelado, tio e sobrinha se veem obrigados a voltar subidamente para a Carolina do Sul para o enterro do pai de Frank, avô de Beth. E é nessa mini road-trip que o professor vai ter que encarar seus traumas do passado e confrontar a realidade de suas escolhas. Momentos de angústia, tristeza, dor e também de alívio.

A fotografia, em que predominam os tons amarelados, o figurino e os cenários escolhidos com primor, nos mergulham imediatamente no universo bucólico da Carolina do Sul daquele então, e nos embalam nessa belíssima história sobre intolerância, respeito e aceitação das diferenças. As excelentes atuações associadas à delicadeza do roteiro são as responsáveis pelo sucesso dessa  história não tão original, mas que toca tão profundamente nossa alma. Impossível não terminar o filme pensando nas consequências e nos estragos que alguns comentários ou atitudes podem ter nas vidas de um ser humano.

Um filme PRA PENSAR e PRA SE ENCANTAR.

Oxigênio (2021)

•June 15, 2021 • Leave a Comment

Título original: Oxygène

Origem: França / EUA

Direção: Alexandre Aja

Roteiro: Christie LeBlanc

Elenco: Mélanie Laurent, Matthieu Amalric (voz), Malik Zidi

Para os fãs de ficção científica, como eu, Oxigênio, de Alexandre Aja, é um achado na Netflix!

Um filme de respiração ofegante, filme-quebra-cabeça, em que MILO, um computador controlador, bem ao estilo HAL de 2001, Uma Odisséia no Espaço, vai determinar o destino da protagonista interpretada por Mélanie Laurent.

Quase todo composto de planos fechados, com muitos closes e corpos fragmentados, Oxigênio é um praticamente one-show-woman com alguns poucos atores que orbitam ao seu redor, na maioria das vezes fora do campo, ou em flashbacks que tentam dar sentido à sua história. Vale dizer que a atriz francesa dá um show de interpretação, sobretudo se considerarmos que ela quase só contracena com vozes, a principal sendo a de Matthieu Amalric, ator que dá vida a MILO.

Claustrofobicamente tenso desde seus primeiros minutos, o filme abre com uma tela negra se revezando com flashes de luz vermelha, acompanhados por uma trilha sonora com uma batida coração cada vez mais acelerada. Não dá para entender direito o que está acontecendo. Quem estaria ali naquela escuridão? Um prisioneiro? Uma cobaia de algum experimento? A medida que aumenta o ritmo da batida, mais imagens nos vão sendo reveladas. A tela escura vai aos poucos cedendo espaço para imagens confusas de alguém tentando romper uma espécie de casulo em busca de ar. Batendo em alguma barreira que a impede de sair dali. Falta espaço. Falta ar. Falta entendimento.

Já nas primeiras sequências aprendemos, porém, que o oxigênio é finito ali e que, como consequência, o tempo de vida da personagem também é limitado, praticamente coincidindo com o  tempo de duração do filme. Começa então a agonia, a luta contra o relógio para tentar sair daquele caixão criônico* que nunca vemos por fora. Estamos sempre junto da personagem, dentro daquele micro espaço, de onde só conseguimos enxergar fragmentos.

Mas à medida que o precioso tempo passa e o oxigênio diminui, vamos juntando as peças do quebra-cabeça e, junto com a personagem – que também desconhece a razão de estar ali naquela situação desesperadora – , vamos entendendo a história.

Não vou contar mais porque não quero dar spoilers e acho que esse é o tipo de filme em que é gostoso ir construindo o sentido a cada nova cena. Adianto, porém, que é um filme bem montado, que prende do início ao fim, com fotografia e trilha super bacanas, nos levando a refletir sobre essa eterna vontade do Homem de brincar de Deus. De querer sempre superar a natureza, mesmo que a copiando para atingir esse fim. Tema que automaticamente nos leva a pensar sobre a ética dos experimentos feitos em laboratórios e do uso de animais e de seres humanos para isso. 

Certamente, não é um tema novo, mas a experiência claustrofóbica foi extremamente bem sucedida em Oxigênio, em função dos enquadramentos e ângulos escolhidos, da fotografia de Maxime Alexandre, do movimento de câmera, da trilha e da excelente atuação de Mélanie Laurent. 

Fora alguns assuntos que poderiam ter sido aprofundados, o grande senão para mim fica por conta da cena final. Totalmente dispensável. Mesmo assim, recomendo Oxigênio para os amantes de ficção científica.

Um filme PRA PENSAR.

* Criônica é um real processo de conservação de animais e seres humanos em baixa temperatura. Usado em situações em que a ciência contemporânea não consegue mais mantê-los vivos, com o intuito de quem sabe um dia poder reverter o quadro. 

Cruella (2021)

•June 8, 2021 • Leave a Comment

Título original: Cruella

Origem: EUA / Inglaterra

Direção: Graig Gillespie

Roteiro: Dana Fox, Tony McNamara

Elenco: Emma Stone, Emma Thompson, Joel Fry, Paul Walter Hauser, Kirby Howell-Baptiste, John McCrea

Nem só de filme-cabeça vive este blog! Hoje o assunto é o mais recente lançamento da Disney,  o live-action de Cruella. Um filme literalmente fantástico que me levou de volta àquela menina que fui, capaz de encantar-me com bicicletas que voam carregando alienígenas ou com um homem-voador super poderoso que vinha de Krypton, um planeta cheio de kryptonita verde… Um cinema-magia que me fazia esquecer o mundo à minha volta, transportando-me para outros lugares, outras vidas, outros tempos.

Esta última versão de Cruella fez isso comigo! Voei, viajei, sorri… 

Dirigido por Graig Gillespie (o mesmo do excelente Eu, Tonya, 2017), o novo Cruella vem bem diferente dos anteriores. Isso porque desde sua criação em 1956, quando a inglesa Dodie Smith lhe deu à luz para compor seu livro infantil “101 Dálmatas”, a vilã-caçadora-de-dálmatas já habitou várias histórias, várias peles e várias almas. O que nunca mudou foi seu cabelo bicolor, nem sua proximidade (pro bem ou pro mal) com os cachorrinhos igualmente bicolores.

Desta vez, porém, ao invés de perseguir os bichinhos para fazer de suas peles um casaco (inconcebível nos dias de hoje!), a ideia foi voltar à infância da vilã a fim de entender como seu caráter sombrio foi forjado ao longo dos anos. Um pouco do que aconteceu com a última versão de Coringa (2019), mas com uma approach bem menos violento, menos crítico da sociedade e muito mais fantasioso, o que o torna apto também para crianças e adolescentes. Aqui a vilã Cruella De Vil, magnificamente interpretada por Emma Stone, não é de todo má, alternando momentos de doçura e crueldade, numa espécie de bipolaridade que não nos deixa ficar com raiva por muito tempo. Até porque a outra vilã da história, a poderosíssima estilista Baronesa (uma sempre fantástica Emma Thompson), com quem a jovem Cruella, fashionista aspirante, vai por diversas vezes se confrontar é caricaturalmente má. Uma personagem típica dos contos de fadas adaptados pela Disney.

A história se passa em uma Londres dos anos 1970, bem industrial, com direito à chuva, fog e muitos tons de cinza, onde alguns dos personagens da trama original reaparecem, como Anita Dearly (Kirby Howell-Baptiste), amiga de escola de Cruella, que nesta versão vira uma jornalista na vida adulta. Assim como Horácio (Paul Walter Hauser) e Jasper (Joel Fry), antigos capangas da vilã, que, desta feita, são elevados à categoria de “família”, de irmãos que a vilã da Disney nunca teve. Dois personagens super carismáticos que dão toques de ternura e humor ao filme. 

Mas um dos maiores trunfos do Cruella de Graig Gillespie é mesmo o figurino maravilhosamente desenhado por Jenny Beavan, já ganhadora do Oscar por Mad Max: Estrada da Fúria (2015). Do street style inglês à elegante alta-costura dos anos 70 (inspirada em Balenciaga e Christian Dior, segunda a própria figurinista), ela nos brinda ainda com criações super originais, com uma pegada meio punk, que termina por combinar com a trilha sonora incrível (outro ponto forte do filme), composta por clássicos do rock, como Should I Stay Or Should I Go, do The Clash, e músicas originais, como Call me Cruella, de autoria da banda britânica Florence and The Machine. Uma playlist divina que embala e pode até fazer cantar na sala de cinema. (Sorry, confesso que cantei!)

Apesar de ter recebido algumas críticas negativas, que ressaltam o caráter mercantilista da empresa do pai de Mickey Mouse, que já teria feito esse filme pensando no sequel (que atire a primeira pedra o estúdio que nunca fez isso!), o novo Cruella tem excelente ritmo, trilha sonora incrível, figurino vencedor, grandes atuações, sendo ainda um filme super divertido, delicioso de ver e totalmente condizente com seu propósito de entretenimento.

PRA SE DIVERTIR

PS. Não saia da sala de cinema ou não desligue a tv antes de terminarem os créditos!

O Som do Silêncio (2019)

•April 14, 2021 • Leave a Comment

Título original: The Sound of Metal

Origem: EUA

Direção: Darius Marder

Roteiro: Darius Marder, Abraham Marder

Elenco: Riz Ahmed, Olivia Cooke, Paul Raci, Mathieu Amalric, Lauren Ridloff

Mais do que um filme, O Som do Silêncio é uma experiência sonora alucinante, que nos faz viver o drama de um jovem baterista que está perdendo a audição. Ele terá que largar a banda de heavy metal, a namorada e todos os sonhos que cultivava para encontrar uma saída para sua nova condição. 

Nessa busca por uma identidade, muitas serão as revelações e os aprendizados. A passagem de Ruben, sensivelmente interpretado pelo britânico Riz Ahmed, por um centro de reabilitação para pessoas com deficiência auditiva (ele, um ex-viciado em heroína) vai fazer-lhe entender a surdez não mais como uma deficiência, mas sim como uma nova cultura. Sua nova cultura! É preciso se acostumar à nova realidade, aprender uma nova língua, novos hábitos e também novos prazeres. E para isso, o músico contará com a experiência e os ensinamentos do mentor da comunidade, Joe (um também excelente Paul Raci), que perdeu a audição durante a guerra do Vietnã. O ator, que é “filho ouvinte de pais surdos” e esteve realmente no Vietnã, traz a experiência de sua infância e adolescência para a tela, quando servia de canal entre seus pais e o mundo dos sons. 

Além desse flerte com a realidade, os atores que interpretam os residentes da comunidade são todos surdos de verdade, o que traz ainda mais veracidade para o filme de Marder, afastando-o talvez assim de acusações de cripface (quando uma pessoa sem deficiência interpreta outra com deficiência). E no caso dos personagens Ruben e Joe, os dois são ouvintes que perderam a audição já adultos, logo, já  dominavam bem a fala. 

O Som do Silêncio sugere ainda a possibilidade de voltar a ouvir por meio de um implante coclear, tecnologia que traz os sons de volta, mas com certas distorções. Uma alternativa muitas vezes rechaçada, ou até mesmo discriminada, pelas pessoas com surdez que veem no procedimento uma traição à aceitação da deficiência. Percebe-se assim que há diversidade mesmo dentro do mundo dos que não ouvem! E algumas escolhas, como em qualquer outro segmento da sociedade, acabam rendendo retaliações.

Filmado em 35mm (e não com uma câmera digital), O Som do Silêncio aposta em uma fotografia mais contrastada, com tons mais escuros, com muitas tomadas em contraluz e muitos closes. Tudo para fazer o espectador se sentir dentro daquela escuridão pela qual Ruben está passando. Mas o grande trunfo do filme é, sem dúvida, o trabalho de som primoroso, imersivo e angustiante, que nos coloca dentro da cabeça do protagonista. Os ruídos do filme são dramaturgia pura! Da gota de café que cai da cafeteira ao jazz que toca na vitrola do trailer em que moram Ruben e Lou (Olivia Cooke), tudo é notado, acentuado, engrandecido. Da mesma maneira que, à medida em que Ruben vai perdendo a audição, nós espectadores também vamos perdendo com ele. Ouvimos sons que se distanciam, sons distorcidos, abafados, agudos, metálicos… Uma experiência aflitiva que nos leva a refletir sobre os tantos sons do nosso quotidiano, aos quais, em geral, não damos a menor importância.

Em um ano em que a OMS divulga o primeiro Relatório Mundial sobre Audição, revelando que cerca de 1,5 bilhão da população mundial vivem com certo grau de deficiência auditiva,  O Som do Silêncio tem tudo para brilhar! Além das indicações para os Oscars de melhor ator e ator coadjuvante já mencionadas, ele concorre ainda em outras quatro categorias: melhor filme, melhor roteiro original, melhor montagem e melhor som. Seis indicações super merecidas, resultado de um trabalho inclusivo, multidisciplinar e encantador deste excelente e primeiríssimo longa de ficção de Darius Marder. Que venham outros mais!

Um filme PRA PENSAR, APRENDER E SE ENCANTAR

Bela Vingança (2020)

•April 9, 2021 • Leave a Comment

Título original: Promising Young Woman

Origem: Reino Unido / EUA

Direção: Emerald Fennell

Roteiro: Emerald Fennell

Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Laverne Cox, Max Greenfield, Connie Britton, Chris Lowell

Quem nunca teve vontade de se vingar daquele alguém que te fez sofrer? Não que o sentimento seja nobre, mas ele existe e é legítimo. O problema é, na verdade, até onde ir para ver satisfeito esse desejo… Bela Vingança (2020), da britânica Emerald Fennell, que concorre ao Oscar de melhor filme neste ano, trata exatamente desse tema de maneira inusitada, colorida, “musicada”, por vezes divertida, por vezes sombria e angustiante. 

Trata-se, na verdade, de um thriller-comédia que traz a violência contra a mulher como tema central, mostrando a indiferença com que muitas vezes o assunto é tratado pela sociedade, incluindo as próprias mulheres, que por puro medo, ou por terem sido formatadas para achar aquele comportamento natural, acabam por relevar atos simplesmente inaceitáveis. Um tema pra lá de atual, nestes tempos em que vemos crescer o número de feminicídios em todo o mundo!

Com uma estética que ora lembra o Maria Antonieta (2006), de Sophia Coppola, ora o Coringa (2029) de Todd Phillips (ambos excelentes, por sinal!), o filme de Fennell é ambientado em um mundo cheio de cores, com uma paleta pastel que sugere uma espécie de caricatura do universo feminino, contrastando fortemente com o tema violento e sombrio ali tratado. A protagonista Cassandra – uma fantástica Carey Mulligan, concorrendo, aliás, ao Oscar de melhor atriz – veste, por sua vez, um figurino que se alterna entre o inocente e o vamp (com um quê de Harley Quinn), construindo um retrato perfeito da própria personagem, uma mulher marcada por traumas da adolescência, e que alterna doçura e veneno com muita desenvoltura! Para completar esse universo de contrastes tão presentes no filme de Fennell, uma trilha sonora dissonante embala as ações mais importantes! 

Todos essas dissonâncias ajudam, na verdade, a trama a não cair no maniqueísmo simplório. Os personagens são complexos, nem bons, nem maus ( são os dois), mas são, sobretudo, o resultado de uma sociedade que precisa aprender urgentemente a criar seus meninos e meninas de forma igualitária, justa e consciente, aceitando suas escolhas de forma livre e não baseada em arquétipos e amarras pré-determinadas.

Apesar do tema pesado, Bela Vingança é um filme gostoso de ver, com ótimo ritmo, deliciosa trilha sonora e uma atuação fantástica de Carey Mulligan. Um filme feminista na medida certa, que mostra que  vingança pode ser um prato que se come com charme, inteligência, cor, mas também com muita dor. Ele concorre ainda em outras 3 categorias: montagem, direção e roteiro original, essas duas últimas com a assinatura de Emerald Fennell. Um super trabalho dessa jovem britânica que participa de uma premiação que já virou História, ao ter indicado pela primeira vez, em 93 anos, duas mulheres ao Oscar de melhor direção. Que venham outros mais! Sem vingança!!!!

PRA PENSAR e PRA SE DIVERTIR

Meu Pai (2020)

•April 5, 2021 • Leave a Comment

Título original: The Father

Origem: Reino Unido / França

Diretor: Florian Zeller

Roteiro: Florian Zeller, Christopher Hampton

Elenco: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Imogen Poots, Rufus Sewell, Mark Gatiss

Concorrendo ao Oscar em 6 categorias – melhor filme, melhor ator (Anthony Hopkins), melhor atriz coadjuvante (Olivia Colman), melhor roteiro adaptado, melhor montagem e melhor design de produção – Meu Pai, do francês Florian Zeller, é um filme-experiência que aborda com beleza, crueza e poesia as dificuldades do envelhecer!

Baseado na peça Le Père, escrita pelo mesmo Florian Zeller, o filme conta a história de uma filha angustiada, que já não sabe mais o que fazer para cuidar de seu pai octogenário que sofre de demência. Ele se recusa a receber ajuda e cria confusão com todas as cuidadoras que a filha tenta arrumar!

Até aí, nada de novo! Parece até uma daquelas histórias que vão-nos fazer chorar até a última lágrima. Ledo engano! Não que gotas não escorram dos olhos – principalmente se você estiver vivenciando ou já tiver vivido algo semelhante –, mas o filme de Zeller é muito maior do que isso. Ele desorienta, desassossega, angustia, e desconcerta porque nos coloca justamente no lugar do protagonista e de sua doença.  E não como meros espectadores. Sentimos por ele, sofremos com ele, perdemo-nos com ele!

E para isso, o diretor – que também é o responsável pela adaptação do roteiro – faz um uso absolutamente fantástico do cenário, com trocas sutis  (ou nem tanto) da decoração do apartamento, com seus corredores e portas que mais parecem um labirinto, onde não é fácil se achar, principalmente quando o cérebro já insiste em pregar peças! 

Dica: prestem bastante atenção ao cenário do filme! O apartamento é praticamente outro personagem e as mudanças em sua decoração são chave para entender essa história. É assim que percebemos (ou não) a passagem do tempo e a progressão da doença, ajudadas pelos cortes secos da montagem, de forma às vezes discreta, às vezes abrupta, sempre bastante confusa. Sem falar na troca de atores. De repente Anne, a filha, que é interpretada por Olivia Colman, aparece na figura de outra atriz (Olivia Williams). Mas quem é mesmo quem nessa história? O que é realidade, o que é confusão? Qual versão é a verdadeira? Onde estamos afinal?

Vemos e sentimos com olhos de Anthony, o pai, interpretado de forma magistral por Sir Anthony Hopkins. Há quem diga que esta é uma das melhores performances de sua longa carreira! Não vi toda sua filmografia para fazer tal afirmação, mas que ele dá um show de interpretação, isso ninguém pode discutir! Seu olhar perdido – por vezes desesperado, por vezes entristecido, agitado ou desligado – é de cortar o coração! E Olivia Colman não deixa por menos, fazendo com Anthony Hopkins uma dupla de primeira grandeza. O sofrimento contido, dolorido, desesperado de uma filha que sabe que a situação só tende a piorar, dá um nó no estômago, um aperto no peito… uma sensação de desesperança!

Ao mesmo tempo, ao colocar-nos “nos sapatos” de Anthony, Meu Pai acaba por dar-nos também uma espécie de orientação, funcionando quase como um antídoto, ou como uma conversa com o geriatra ou com o psicólogo, fazendo-nos entender que a única munição da qual dispomos para enfrentar essa doença é o amor e a paciência. Não adianta ficar com raiva, brigar ou discutir! É preciso ouvir, abraçar e dar colo para quem já fez tantas vezes o mesmo por nós.

FILME PARA PENSAR, PRA CHORAR E PRA SE ENCANTAR.

Agente Duplo (2020)

•March 25, 2021 • Leave a Comment

Título original: El Agente Topo

Direção: Maite Alberdi

Roteiro: Maite Alberdi

Elenco: Sergio Chamy, Berta Ureta, Marta Olivares, Romulo Aitken, Petronila Abarca

Não há como não se apaixonar por esse espião de 83 anos de idade, protagonista de Agente Duplo, documentário chileno que concorre ao Oscar de Melhor Documentário em 2021 – único representante latino-americano da categoria e o primeiro chileno a receber essa indicação.

Dirigido por Maite Alberdi, Agente Duplo é um documentário de detetives, extremamente poético, que flerta o tempo todo com a ficção, buscando referências nos filmes de espionagem ou nos famosos films noirs e suas tantas sombras e persianas. Diferente daquelas produções hollywoodianas, porém, tudo o que vemos ali na tela é real. Não há atores. Não há ficção. Não há ensaios. Não há artificialidades. É a vida como ela é! 

Sergio Chamy, recém-viúvo, decide procurar uma ocupação para se distrair do sofrimento que o luto lhe impõe. Atraído por um anúncio de jornal que busca homens entre 80 e 90 anos de idade para um trabalho de 3 meses, ele acaba sendo contratado por uma filha para se infiltrar na casa de repousos onde mora sua mãe. O objetivo é descobrir se ela estaria sofrendo maus-tratos por parte dos funcionários daquela instituição.

Chegando lá, o “espião” Sérgio, munido de óculos e canetas-filmadoras, leva super a sério sua nova função, enviando áudios diariamente para o chefe Romulo, contando todos os detalhes observados. Aos poucos, ele vai se envolvendo com as histórias e as dores dos moradores daquela casa (e nós espectadores também), virando a companhia que eles não têm. Personagens vão nos sendo assim  apresentados e vamos acompanhando seu dia-a-dia. Tem a Marta, que tenta fugir todo dia para sua casa e não entende porque sua mãe não vem logo buscá-la. A Bertita, que se apaixona por Sergio e sonha em casar-se com ele. A poeta que declama seus poemas para os colegas no pátio. E tantos outros. A investigação vai ficando cada vez mais para segundo plano…

Agente Duplo parte assim de uma história insólita (mas real) para virar uma grande reflexão sobre o envelhecimento, sobre a solidão e o abandono. Por vezes divertido, por vezes dolorido, o documentário é fruto de um olhar delicado e sensível, talvez um olhar de filha, que mostra o isolamento e a não-integração dos “mayores” em uma sociedade que teme envelhecer. O filme de Maite Alberdi é, no final das contas, um bálsamo para o coração! Um lindo e forte candidato ao Oscar 2021, que mostra que a realidade pode ser ainda mais surpreendente do que a ficção! Além de fazer a gente querer sair correndo e dar um abraço bem apertado nos nossos velhinhos!!!!!!

PRA PENSAR E PRA SE EMOCIONAR

Nova Ordem (2020)

•March 18, 2021 • Leave a Comment

Título original: Nuevo Orden

Origem: México / França

Direção e roteiro : Michel Franco

Elenco: Mónica del Carmen, Diego Boneta, Naian González Norvind, Dario Yazbek Bernal, Fernando Cualtle, Patricia Bernal, Roberto Medina

Em uma Cidade do México distópica, mas com bastante cara de atualidade, há um movimento de revolta dos menos favorecidos, de pele escura, que atacam violentamente os ricos brancos da capital mexicana, numa coreografia que lembra muito a dos filmes de zumbis. 

Tudo começa no casamento de uma família de classe alta que, com seus carrões blindados, motoristas, governantas, champanhe, drogas e dinheiro de propinas, vê, de uma hora para outra, sua casa invadida, roubada e seus convidados agredidos.

Nova Ordem nos apresenta literalmente uma luta de classes, em que a violência extrema incomoda, perturba, nos tira do eixo. Paroxismo é a palavra que melhor cabe para descrever essa história! Um exagero que flerta com a superficialidade, mas que não deixa de apontar um sistema social falho, típico de nossos países latino-americanos, em que muitos poucos detém muita riqueza, enquanto milhões não têm quase nada para viver. Um formato já mil vezes denunciado pelo cinema, pela literatura e pelo jornal nosso de cada dia, sistema comprovadamente falho, mas que continua se perpetuando mundo afora.

O filme, que tem uma bela fotografia, em que o verde dá o tom da revolta (mesma cor usada pelas mulheres em seus protesos pelo direito ao aborto), tem também excelente ritmo, prendendo a atenção do início ao fim. Um fim que, aliás, chega muito súbito e que não se resolve completamente, merecendo mais desenvolvimento. Falta alguma coisa! Ainda que a frase final nos deixe com algo para refletir e para apagar qualquer traço de esperança dos nossos corações: “Sólo los muertos han visto el final de la guerra”.

Nova Ordem, ganhador do Leão de Prata em Veneza (prêmio do júri) no ano passado, faz refletir sobre sociedades construídas em cima das feridas do colonialismo (racismo, violência, corrupção, etc.). Mesmo assim, foi acusado de racista e de classista aqui no México, quando do lançamento de seu trailer. Segundo alguns críticos, o filme de Franco emblematizava o olhar do “White Mexican” que teme uma guerra civil no país. Mas é preciso enxergar além  do trailer… e das imagens estereotipadas. Nuevo Orden critica justamente o comportamento da elite mexicana, afeita a mordomias, regalias e tão acostumada às injustiças, além de criticar ainda a militarização do país e a polarização cada vez mais evidente, incentivada, de alguma maneira, pelo atual chefe de estado.

Além disso, apesar de serem os empregados de pele escura e traços indígenas os que aparentemente tomam a frente do comando da rebelião, o que vamos percebendo ao longo da história é que a nova ordem estabelecida não tem nada de nova! O poder, na verdade, só muda de mãos e os trabalhadores honestos continuam sendo as maiores vítimas dessa narrativa e desse sistema social pra lá de falido.

Um filme PRA PENSAR.

Pieces of a woman (2020)

•March 12, 2021 • Leave a Comment

Origem: Canadá / Hungria / EUA

Direção: Kornél Mundruczó  

Roteiro: Kata Weber

Produção: Martin Scorsese

Elenco: Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Ellen Burstyn, Molly Parker, Sarah Snook

Como passar pelas dores de um parto, segurar sua filha no braço para logo perdê-la, e mesmo assim ter que seguir adiante? Como sair inteira dessa experiência? Como acordar e encarar a vida que não mais vai existir? Como lidar com o vazio que ficou no lugar do sonho?

Pieces of a woman trata de tudo isso de forma extremamente sensível, delicada e linda! A primeira meia-hora, composta por um longo plano-sequência e uma fotografia digna de galeria de arte, é de tirar o fôlego!  O diretor de fotografia Benjamin Loeb faz uso de cores quentes e de filtros que dão uma aura de feminilidade, ternura e graça à história contada, além de criar um clima mais intimista, propício a um parto feito em casa. Vanessa Kirby, que interpreta Martha, está simplesmente divina no papel dessa mãe de primeira viagem, futuramente despedaçada. Do mesmo modo que Molly Parker dá um show como Eva, a parteira que tenta passar segurança diante do perigo da situação ali apresentada. Muita tensão, esperança, alegria, desespero, tristeza, e dor, tudo envolto em algo de sublime, que atrai, assusta e fascina! 

A outra hora e meia do filme não tem a intensidade do começo (acho que nós espectadores não aguentaríamos!!!), mas mantém um bom ritmo, adotando novas cores e tons, em que verde e vermelho predominam, e closes são frequentes. Novas questões são incorporadas ao enredo, como a diferenças de classes sociais dos personagens principais, diferenças de religião, etc., o que, ao meu ver, era dispensável para o desenrolar de uma história que já carrega em si tanta força.

Pieces of a woman é, em sua essência, um filme sobre dores de mulher: dores físicas, mentais, espirituais, dores totais, imensas, insuportáveis, ou quase… Dores por decisões tomadas, por culpas sentidas, por sonhos desfeitos, por planos desmantelados.  Mas o que também encanta no filme do húngaro Kornés Mundurczó é a fragilidade do personagem masculino – o pai Sean, interpretado por Shia LaBeouf –, que também sai em frangalhos dessa vivência. Confesso que me impressionou a sensibilidade do diretor, guiado obviamente pelo belo roteiro escrito por sua esposa, também húngara, Kata Wéber, ao retratar com tanta propriedade o universo feminino, assim como ao mostrar um lado do homem nem sempre bem estampado no cinema. 

Pieces of a woman é um filme que dói e encanta! Não recomendado para grávidas! PRA SOFRER

 
WP Like Button Plugin by Free WordPress Templates