O Regresso (2015)

•fevereiro 3, 2016 • Leave a Comment

Título original: The Revenant

Origem: EUA

Direção: Alejandro González Iñárritu

Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Mark L. Smith, Michael Punke (livro)

Com: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhanall Gleeson, Will Poulter, Paul Anderson, Forrest Goodluck

A corrida para o Oscar já começou há algum tempo, mas só agora estou tendo a oportunidade de começar a assistir aos filmes-candidatos de 2016. Abro hoje, então, os trabalhos com aquele que obteve o maior número de indicações – 12 no total – à premiação concedida pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas Americana: O Regresso.

Filmão, a ser visto impreterivelmente no cinema, poético, tenso, denso, sublime e sangrento.

Baseado no livro de Michael Punke, O Regresso conta a história (verídica, apesar de inverossímil) de sobrevivência de Hugh Glass, um caçador de peles de animal e espécie de guia nas terras geladas do norte dos Estados Unidos, fronteira com Canadá. Personagem magnificamente interpretado por Leonardo DiCaprio, que tem grande chance de levar a estatueta dourada neste ano.

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No início do século 19 (por volta de 1820), Glass, acompanhado de seu filho mestiço Hawk (Forrest Goodluck), tem como missão auxiliar um grupo de mercenários (caçadores de pele) e oficiais americanos a atravessar os “desertos” gelados do Missouri. Uma região bela e hostil, habitada por animais selvagens e índios das tribos Pawnee e Ree (Arikaree), e extremamente disputada por americanos e franceses que buscam na caça aos animais (e às suas peles) a solução para o frio, para os seus bolsos e para suas conquistas territoriais.

Dentro do grupo há John Fitzgerald, também magnificamente interpretado por Tom Hardy, um homem incrédulo que odeia índios e que não enxerga em Glass nada além de um inimigo. A razão principal para tanta animosidade é o passado “duvidoso” do rapaz: filho com uma Pawnee e assassinato de um oficial americano. Depois então que Glass é atacado por um urso fêmea e fica entre a vida e a morte, tornando-se um peso para a expedição, Fitzgerald encontra ainda mais motivos para descarta-lo do grupo. Assim, quando encarregado de cuidar do moribundo, enterra-o (não totalmente) ainda com vida em uma cova e o abandona naquela imensidão gelada.

A partir daí começa a saga de Glass, um homem com feridas profundas que renasce para se vingar de seu algoz.

E para contar essa história de amor e vingança, Iñárritu foi buscar no olhar certeiro e poético do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki seu maior trunfo. O já “oscarizado” diretor de fotografia de Gravity (2013) e Birdman (2014) tem mais uma vez grandes chances de levar neste ano, a terceira consecutiva.

Sublime talvez seja a palavra mais acertada para definir a estética de O Regresso. Uma natureza bela e aterrorizante, que fascina e amedronta, filmada com maestria. Planos-sequências, planos estáticos, planos longos, primeiros planos, closes, planos curtos, tudo se alterna, complementa e intercala. Planos filmados com uma câmera bailarina (ou guerreira) que acompanha de perto o movimento dos personagens, nos fazendo viver cada cena. Batalhas filmadas com realismo, com flechas atravessando corpos, muito sangue e muita agitação contrastam com a beleza de longos planos calmos de paisagens encantadoras que demonstram a pequenez do homem diante da natureza.

Iluminação natural, sem efeitos, que trazem ainda mais realismo para o cenário de O Regresso complementam a estética de O Regresso. Difícil dizer quais cenas merecem destaque, são tantas… talvez me arriscasse em assinalar a que Glass se torna um pontinho preto no meio do vasto branco já na segunda metade do filme, ou a linda cena do céu visto em contra-plongée absoluto, ao som da respiração do protagonista, ou ainda o primeiro plano-sequência, logo após o prólogo, em que, com uma câmera baixa sobrevoamos algo que parece ser um riacho, à altura dos pés dos personagens. Não sei… são tantos momentos sublimes!

Uma cena que marca, não só pela estética, mas, sobretudo, pelo que ela representa no filme é aquela em que Glass tira as tripas do cavalo para se abrigar em seu ventre. Momento em que vemos a necessidade de proteção materna (e/ou paterna) para, em seguida, vermos o renascer do animal homem. A simbiose homem natureza, homem animal, lindamente representada por um plano em plongée absoluto em que o vermelho ganha destaque na imensidão branca.

O aspecto “família” (maternidade, paternidade), aliás, é central no filme, um verdadeiro leitmotif que move seres de tribos, raças e espécies tão distintas. Todos, ou quase todos ali, são movidos por questões familiares: o índio que sai em busca da filha raptada, Glass que quer vingar a morte de sua família, o índio que aparece mais tarde na historia e que erra pelo mundo depois de ter perdido sua esposa ou ainda a ursa que ataca para proteger seus filhotes… Um tema universal que transcende culturas, línguas, regiões geográficas, credos religiosos, etc.

Com este filme épico-poético, Iñarritú continua a esbanjar talento, tornando-se um forte candidato na corrida ao Oscar. Se tivesse que assinalar um senão do filme, seria o ritmo. A duração não ajuda, claro! O filme é longo e em alguns momentos acaba pesando um pouco, fica muito lento, talvez dispersando a atenção de alguns espectadores. Talvez um equilíbrio melhor entre cenas de ação e cenas de contemplação tivessem ajudado neste quesito. Mas nada que tire o brilho deste filme que veio para entrar na história.

Um filme PRA SE ANGUSTIAR e PRA CONTEMPLAR.

 

The Lobster (2015)

•dezembro 6, 2015 • Leave a Comment

Título original: The Lobster

Origem: Inglaterra, Irlanda, França, Grécia, Holanda, Estados Unidos

Direção: Yorgos Lanthimos

Roteiro: Yorgos Lanthimos, Efthimis Filippou

Com: Colin Farrell, Rachel Weisz, Léa Seydoux, John C. Reilly, Olivia Colman

Faz tempo que não assisto a um filme tão original, tão surreal e tão rico em conteúdo! Uma excelente sátira de nossa sociedade ocidental, totalmente surrealista, regada a uma forte dose de humor negro, sarcasmo, tristeza e uma certa melancolia.

The Lobster, quarto filme do grego Yorgos Lanthimos (primeiro rodado em inglês) e ganhador do Prêmio do Júri em Cannes neste ano, é forte, denso, escuro, irônico e absolutamente fantástico! the lobster poster

A história se passa em uma sociedade distópica perdida em algum lugar da Europa em algum período da História. Neste lugar não identificado no mapa nem no calendário, ser casado é obrigatório. Os solteiros são enviados a um hotel-prisão-de-luxo e têm até 45 dias para conseguir arrumar um parceiro. Caso não sejam bem sucedidos nesta missão, são transformados em animais (de sua preferência) e soltos em uma floresta das redondezas.

O filme vai então contar a história de David (um excelente Colin Farrell), que será dispensado por sua esposa já na primeira cena (depois do prólogo). No canto da tela, vemos David de costas, enquanto ouvimos a voz de uma mulher terminando um longo relacionamento. Em seguida, vemos David sendo levado por mordomos-enfermeiros, junto com seu cachorro (que depois vamos descobrir que se trata do seu irmão), para uma van branca (Ambulância? Camburão?). Até aí, não sabemos muito do que se trata o filme. Percebemos que há algo de bizarro, sobretudo pela trilha que acompanha essas primeiras cenas (meio cômica, meio de suspense), mas, apesar do prólogo meio non-sense que vimos logo antes, ainda não enxergamos o quão surreal será esse mundo.

Eis que então, uma voz de mulher surge e começa a narrar a história. Sua voz, junto com as instruções dadas pela gerente do Hotel, a quem seremos apresentados um pouco mais adiante no filme, mais as falas dos personagens, vão nos fazendo entender aos poucos como funciona essa sociedade surrealista que tanto tem em comum com a nossa.

Uma sociedade maniqueísta (qualquer semelhança é mera coincidência), hipócrita, ditada por padrões extremamente rígidos, em que poucos têm nome. Vestem-se de forma idêntica e são, em geral, identificados por suas características físicas (“defeitos”), por seus hábitos ou, mais precisamente, pelos “rótulos” que lhes são colados ao longo de suas vidas. Ex: O homem manco (the limping man), a mulher do biscoito (the biscuit woman), a mulher que sangra o nariz (the bleeding nose woman), a míope (the short sighted woman), etc. E não é assim também em nosso mundo? Todos colocados em “caixinhas”? A gordinha, o manco, a branquela, o nanico, a estressada, o zen, etc. Difícil é a gente conseguir se livrar dos rótulos que “ganhamos”… como se isso definisse quem somos!

Na segunda parte do filme, deixamos o hotel e adentramos a floresta, onde vamos descobrir os solteiros-rebeldes, uma espécie de resistência ao stablishment, lideradas pela atriz francesa Léa Seydoux, que, assim como os outros personagens, não tem nome. Uma facção que faz oposição às imposições do sistema, mas que nem por isso deixa de ser radical, burra e cega. Na verdade, creio ser este o ponto crucial do filme. É justamente essa nossa mania de só enxergar preto ou branco, de querer colocar tudo dentro de padrões, etiquetas, compartimentos, etc., que nos emburrece, que nos torna míopes ou até mesmo cegos. Não à toa os protagonistas são míopes e várias cenas estão fora de foco!

Os rebeldes-solteiros são tão ditadores e radicais quanto os casados-conformados. Os membros desta facção não podem ter relações sexuais, não podem se apaixonar, têm que cavar literalmente sua própria cova e só podem dançar ao som de música eletrônica, por que assim só podem dançar sozinhos. Desculpem-me os fãs do eletrônico, mas adorei a piada!

E é no meio deste outro mundo de extremos que David vai descobrir o amor, na figura da solteira-rebelde Míope Rachel Weisz. E, neste ponto, o filme se converte em uma clássica (nem tanto) história de amor, em que os apaixonados têm que lutar contra as convenções da sociedade para poderem viver seus sentimentos.

The Lobster é um drama cômico-fantástico – lembrou-me aqui e ali os filmes de Wes Anderson – que trata de forma irônica de preocupações recorrentes em nossa sociedade ocidental, como a solidão, o conformismo, a adequação, a falta de liberdade, os estereótipos e muito mais. Um filme extremamente sério, disfarçado de cômico por suas tantas alegorias e que nos faz pensar por muito tempo depois que saímos da sala de cinema.

Como não é difícil de imaginar, o animal escolhido por David, caso ele não consiga arrumar uma nova parceira é uma lagosta. Também não por acaso um animal-símbolo do Surrealismo. Por que uma lagosta? Por ser um animal que vive muito (mais de 100 anos), por viver no mar (ele gosta do mar) e por ter sangue azul (como os nobres).

E você, se tivesse que escolher um animal para ser em outra vida, que animal escolheria?

PRA PENSAR

Refugiado (2014)

•novembro 15, 2015 • Leave a Comment

Título original: Refugiado

Origem: Argentina

Direção: Diego Lerman

Roteiro: Diego Lerman, María Meira

Com: Julieta Díaz, Sebastián Molinaro, Marta Lubos, Silvia Baylé, Sofía Palomino, Sandra Villani, Paula Ituriza, Carlos Weber

O texto de hoje não é apenas sobre um filme, mas sobre uma experiência fílmica e de vida que me marcou imensamente nessa semana que passou.

refugiado

A convite do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), tive o privilégio de assistir à projeção do filme Refugiado em um centro cultural de uma “villa” (favela) de Buenos Aires. A ideia era projetar um filme que tratasse do tema violência doméstica para um público que sofre na pele (e nos nervos) os males de uma relação desigual, injusta, indigna. A projeção seria, então, seguida de uma “charla” – conversa informal sobre o tema.

A ficção

A história que nos conta Refugiado é uma ficção, não está baseada na vida de ninguém especificamente e, ao mesmo tempo, relata o desespero, o medo e a dor de tantas mulheres em todo o mundo.

O filme abre com as imagens do menino Matías (Sebastián Molinaro) em uma festa de aniversário. Vestido com capa vermelha, óculos de natação (transformado em máscara) e um cinto de utilidades improvisado, ele espera a chegada de sua mãe Laura (Julieta Díaz), que deveria vir buscá-lo, mas que, por razões desconhecidas, não aparece na hora devida.

A roupa de super-herói das primeiras cenas – escolha super acertada de figurino – já anuncia o que vai ser um leitmotiv do filme: é preciso ter super poderes para enfrentar certas situações da vida. Uma fantasia que representa tanto a inocência da infância como o desejo e a necessidade reais de se transformar, vez por outra, em super-herói a fim de sobreviver. Uma fantasia que vai, pouco a pouco, perdendo suas partes – somem primeiro os óculos, depois o cinto, por último a capa – ao mesmo tempo em que o pequeno Matías vai perdendo sua inocência. Já na segunda sequência, quando o menino encontra a mãe no chão do apartamento, toda machucada, depois de ter sido agredida pelo marido, nosso pequeno protagonista já se vê obrigado a vestir sua verdadeira capa de herói.

A partir daí o filme vai ser tornar um thriller (meio road-movie) com mãe e filho saindo em disparada numa tentativa enlouquecida de escapar dos maus tratos. Indo de um lugar a outro – centro de refugiados, motel, etc., – os dois vão ser perseguidos o tempo todo pelo toque estridente do telefone celular da mãe. Ferramenta de comunicação transformada em ferramenta de tortura, ele é a personificação do agressor. Cada toque representa uma ameaça, uma tensão que cresce, um medo que se apodera da agredida. O toque escolhido para o telefone – outra escolha bem acertada – é enlouquecedor, deixando-nos aturdidos, incomodados, irritados, nervosos. Tememos por eles e com eles. A agressão física é substituída ou agravada pela psicológica. Um jogo cruel, de difícil saída.

A direção de arte é muito boa. Uma paleta de cores tristes, escuras, que retratam bem o clima de tensão da história. Cenas de fuga filmadas com uma câmera nervosa contrastam com as cenas posadas, captadas por uma câmera fixa de enquadramento perfeito. Belas cenas, bem compostas, bem pensadas que nos permitem respirar para continuar o périplo rumo à liberdade, verdadeiros quadros que retratam uma triste realidade.

A realidade

Depois do filme, o debate. Ou melhor, a “charla”. E foi aí que desmontei, constatando, ao mesmo tempo, o poder da sétima arte em desencadear um processo positivo de catarse. As mulheres ali naquela plateia se identificaram com Laura, sentiram sua dor, ao reviver (e ver na tela) suas próprias dores. Com vozes tremidas, compartilhara corajosamente suas próprias experiências. Foram vários relatos de mulheres que já saíram de situações de violência, ou de outras que, com lenços de papel em punho, contaram o que ainda estão vivendo, e o que estão fazendo (ou tentando fazer) para tentar escapar do pesadelo. Em seus testemunhos, confirmaram que o telefone é, de fato, uma arma de controle e de tortura muito usada pelo agressor. Um terror psicológico que complementa a agressão física e que, pior, funciona 24 horas, 7 dias por semana.

Aprendi também ali que muitas das atrizes e figurantes que aparecem no filme são sobreviventes reais de violência doméstica. Mulheres que conseguiram sair do inferno da submissão, do medo e da agressão. O processo não é fácil, não é simples e não é rápido. Há recaídas, há vais-e-voltas, há a culpa por separar o pai dos filhos, há a dependência financeira, há o orgulho, a vergonha… tantos fatores que impedem que escapem da situação. Mas há saída. Nem que para isso, se tenha que vestir a capa de super-herói, colocar o cinto de utilidade e fugir em disparada.

Refugiado é um grito de alerta, um abrir os olhos para uma situação que não é privilégio de um único país, de uma única cultura ou de uma única classe social. A violência doméstica desconhece essas diferenças, ela acontece em todas as camadas da sociedade, em todas as épocas de nossa história, em todos os lugares do mundo. Infelizmente. Que este filme não violento sobre violência – não há nenhuma cena violência (física) – nos sirva de aviso.

PRA PENSAR e PRA SE ANGUSTIAR

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014)

•novembro 2, 2015 • 2 Comments

Título original: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

Origem: EUA

Direção: Alejandro González Iñárritu

Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris, Armando Bo, Raymond Carver

Com: Michael Keaton, Emma Stone, Naomi Watts, Edward Norton, Zach Galifianakis, Andrea Riseborough, Amy Ryan

Com anos-luz de atraso, assisti finalmente ao famoso e oscarizado Birdman. Confesso que, apesar das estatuetas douradas – Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia – , não fui com “muita sede ao pote”, já que havia lido nas redes sociais e em algumas críticas da época (sobretudo na francesa) que Iñárritu teria se exaltado com este filme, aproveitando-se para se exibir (show-off), usando e abusando das potencialidades da sétima arte para mostrar o quão bom ele era…

birdman cartaz

Depois de assistir ao filme ontem, só pude concordar com esses comentários: sim, o diretor mexicano se exibiu, se exaltou, exagerou e comprovou mais uma vez o seu enorme talento. Birdman é um filmaço, super merecedor dos inúmeros prêmios recebidos. E talvez injustiçado por alguns críticos justamente por pagar o preço da fama, drama tão bem tratado em seu roteiro.

Bem, vamos ao filme!

Em uma espécie de mise en abyme (“narrativa em abismo” – narrativa que contém outras narrativas dentro de si), Birdman conta a história de Riggan Thomson (Michael Keaton) um ator passado da meia idade, em decadência, que luta com todas as suas forças para recuperar o sucesso e a glória que um dia bateram à sua porta. No passado, incarnou nas telas de cinema o super herói Birdman, tendo se tornado uma celebridade, aclamado em todo o mundo. Depois de ter dito não à sua participação em Birdman 4, Riggan viu sua carreira desmoronar aos poucos. Não sem relação com a própria carreira e vida de Michael Keaton, que encarnou Batman (1989) e Batman Returns (1992), não conseguindo mais grandes destaques no universo hollywoodiano.

No presente, numa tentativa louca de recuperar o sucesso, o reconhecimento da crítica e do público, e sobretudo, sua autoestima e sanidade mental, Riggan decide dirigir, produzir e atuar em uma peça de teatro – What we talk about when we talk about love , de Raymond Carver – adaptação de um texto consagrado pela Broadway. Interessante ver aqui aquele eterno duelo entre as artes, voltando à velha questão de que o teatro seria uma arte superior ao cinema, porque mais antiga, mais pura, etc. Talvez um “tendão de Aquiles” na vida dos atores de cinema…

A história vai, então, se passar nos dias que antecedem a estreia da peça na Broadway, período em que vemos a angústia e o temor de Riggan crescendo e tomando conta de todo o seu ser. Convivem em sua mente (e corpo), o ator Riggan Thomson e o personagem Birdman, numa simbiose meio esquizofrênica, um tentando dominar o outro e assumir o poder. De um lado um fracassado mortal que tenta provar seu valor; do outro, uma celebridade, o aclamado herói, dotado de super poderes, totalmente seguro de seu sucesso. Um duelo – que, certamente, não é privilégio só de Riggan – super bem retratado pela voz interna, pela trilha sonora e pela câmera nervosa que persegue os personagens no labirinto dos bastidores do teatro, local que deixa o glamour de fora. Lá vemos os atores despidos de suas fantasias, de suas máscaras, maquiagens, vemos suas fragilidades e suas “humanidades”. Corredores estreitos e escuros, escadas, portas e mais portas que nos confundem, nos causam náuseas, claustrofobia ou, ao menos, um certo incômodo pelo seu excesso. Como se acompanhássemos os vais e vens do pensamento de Riggan, suas angústias e questionamentos, seu aprisionamento naquele homem pássaro que foi um dia e que não o deixa ser ele mesmo.

Aí talvez eu concorde que houve exagero! Iñárritu exagerou no uso dos planos-sequências. Eles me cansaram, me incomodaram ao longo de todo filme. Pensei: poxa, precisava de tantos? Depois, me dei conta que justamente essas tomadas sem fôlego, com movimentos sinuosos, arredondados, esquizofrênicos, davam na justa medida o sentimento de encurralamento que vive o protagonista (e muitos outros atores de teatro e de cinema por este mundo afora, sem falar de nós, espectadores, atores da vida real, que buscamos sem cessar o reconhecimento de alguém). Uma técnica difícil, que exige precisão e muito ensaio, e que, aqui, foi muito bem utilizada.

A trilha é um caso à parte. Quase toda composta em cima do som do baterista Antonio Sanchez, propositadamente ou não, ela acentua esse aspecto de “irritação” e “incômodo”. (Que desculpem os bateristas!). É ela que dá o tom, o ritmo ao movimento do personagem e também à sua loucura. O toque repetitivo irrita como um zumbido dentro da cabeça, uma martelo que bate sem cessar e que enlouquece. Mais uma vez, exagerado, demasiado, mas super apropriado ao filme.

Assim sendo, concluo por onde comecei: Birdman é sim excessivo, com planos-sequências demais, bateria demais, movimento demais, tempo demais (achei um pouco longo!), porém tudo utilizado dentro de um mesmo propósito: de nos mostrar o impasse (ou a loucura) a que a celebridade pode levar. Pode até ser que o lado Birdman de Iñárritu tenha tido, de fato, o propósito de se exibir e derramar todos seus talentos sobre o público. Não importa! O que conta é que o resultado foi um filme de primeira grandeza.

PRA PENSAR

El Patrón – Radiografía de un Crimen

•outubro 5, 2015 • Leave a Comment

Título original: El Patrón – Radiografía de un Crimen

Origem: Argentina, Venezuela

Direção: Sebastián Schindel

Roteiro: Sebastián Schindel, Nicolás Batlle, Javier Olivera, Elías Neuman (livro)

Com: Joaquin Furriel, Luis Ziembrowski, Mónica Lairana, Germán de Silva, Guillermo Pfening, Andrea Garrote

Hoje vamos de filme argentino de novo!

Desta vez um filme recente, lançado em circuito comercial no início deste ano. Não um tão grande sucesso comercial como Relatos Selvagens (leia o post do dia 23/1/15), mil vezes aclamado e alardeado por toda a imprensa do mundo, mas um filme que chegou tímido, sem fazer grandes alardes, e que vem conquistando pouco a pouco os espectadores que têm o privilégio de lhe assistir.

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El Patrón – Radiografía de un crimen é um filme que conta a história de um crime cometido por um homem simples, pacato, de alma pura. Um ser humano que depois de tantos anos de humilhação, submissão e desencanto, perde seu controle (não tão assim sem relação com Relatos Selvagens…).

Não se trata, naturalmente, de um filme de fácil digestão, já que o prato principal do cardápio é “carne podre”. Carne podre e mesmo assim vendida à população em açougues portenhos. Carne podre de gente de alma estragada, cruel, capaz de explorar ao máximo um cidadão humilde, semi-analfabeto, rotulado desde pequeno de “inapto” pelo Estado Argentino. Aliás “cidadão” é um termo aqui totalmente mal empregado, já que ao protagonista desta história nunca foi apresentada a tal da “cidadania”. Um homem do campo a quem foram negadas as letras, a dignidade, e a quem, desde cedo, foi imposto o conformismo e a aceitação de sua condição de incapaz.

Mas o que torna tudo ainda mais podre é que El Patrón conta uma história real, registrada de forma magistral em livro homônimo – escrito por Elías Neuman, o próprio advogado que defendeu o caso – e levado à telona pelo olhar de Sebastián Schindel, diretor de documentários, estreante no mundo da ficção (ficção?).

Foram doze anos de muito trabalho, entre pesquisas sobre a escravidão moderna na Argentina e em outros países da América Latina, testemunhos, conversas com o advogado/autor do livro, “passeios” pelos açougues do país, viagens a Santiago del Estero, escolha dos atores, até chegar ao roteiro e depois à realização do filme.

El Patrón abre com uma sequência do advogado entrando no Tribunal para resolver pendências e dando de cara com Hermógenes Saldívar (brilhantemente interpretado por Joaquin Furriel), um homem simples de Santiago del Estero – província situada ao norte do país -, acusado de haver assassinado seu patrão, dono de uma rede de açougues em Buenos Aires. No entanto, nesta cena em que aparece pela primeira vez, seu rosto mal pode ser visto, escondido no canto direito da tela, à contra-luz, o foco ficando sobre a Juíza. Composição bem feita e sintomática da situação em que vive o “criminoso” ali naquele momento: a luz na detentora do conhecimento, da “verdade” e da lei, enquanto a sombra paira no detentor da culpa, da ignorância e do pecado.

No entanto, é a juíza, inconformada com o descaso do Defensor Público que deveria atuar no caso de Hermógenes, que pede para o advogado assumir a defesa do réu em troca de um outro pedido feito por ele (troca de favores).

A partir daí o caso vai ser reconstituído por meio de diversos flashbacks, em que vamos vendo e entendendo pouco a pouco o que levou Hermógenes a perder o controle.

Schindel, talvez influenciado pelo mestre Eisenstein, filmou muitas cenas de “pedaços”, compondo-as de forma a nos causar certo asco, ou choque, para ficar dentro da linguagem do cineasta russo. Pedaços de carnes sendo manipuladas por mãos sem rostos nem corpos. Pedaços de carnes sendo cortadas, dilaceradas por mãos sem dono. Ou por um dono sem identidade. Gado. Um dono qualquer cujo nome vai ser roubado, assim como serão roubados seus documentos e sua dignidade. Carne de vaca, carne de homem. Homem sem rosto, sem voz. Faca de crime. Crime sem faca.

Uma pena que o filme não se aprofunde muito no aspecto emocional de Hermógenes e dos demais personagens. Poderia ser ainda muito mais rico. Talvez uma escolha feita por falta de tempo, de verba ou simplesmente por respeitar o livro em que se baseou.

El Patrón é tenso, triste, revoltante, bem feito e, acima de tudo, é um filme que denuncia a situação indecente em que vivem tantos trabalhadores na Argentina e em diversas partes do mundo. Uma obra que traz à tona o assunto que muitos não querem ver: o mundo não está livre da escravidão. Ela apenas está, hoje, mascarada sob outras formas de exploração do trabalhador.

Que a história de Hermógenes transformada em livro e em filme nos sirva não apenas como um “entretenimento”, mas que seja capaz de abrir nossos olhos para enxergar a situação precária e desumana que persiste em nossos tempos, em nossas sociedades ditas “desenvolvidas”.

Não sem interesse é o fato de que a história se passa dentro dos açougues da Argentina, tendo como grande vedete a queridinha dos argentinos (e dos turistas que vêm por aqui): a carne. É preciso abrirmos os olhos e ficarmos atentos. Ou como dizem por aqui: ¡Ojo!

Um filme PRA SE ANGUSTIAR, PRA APRENDER e PRA SE INDIGNAR (nova categoria).

Betibú (2014)

•setembro 1, 2015 • 5 Comments

Título original: Betibú: crónica de un crimen

Origem: Argentina / Espanha

Direção: Miguel Cohan

Roteiro: Miguel Cohan, Ana Cohan, Claudia Piñeiro

Com: Mercedes Morán, Daniel Fanego, Alberto Ammann, José Coronado

Hoje escrevo sobre mais um filme argentino, na verdade, mais uma coprodução Argentina/Espanha. Desta vez, porém, um filme mais clássico em sua estética, ritmo e conteúdo, e que, talvez, agrade mais facilmente os olhares não tão acostumados ao filme de arte, mais lento e sem grandes ações.

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Betibú é um thriller que gira em torno da investigação de um assassinato. Ou de vários.

Baseado no livro homônimo de Claudia Piñeiro, o filme começa revelando-nos a morte de Pedro Chazarreta, empresário poderoso, que aparece morto em sua mansão localizada nos arredores de Buenos Aires, no condomínio de luxo La Maravillosa.

Com uma câmera-bailarina, dona de movimentos suaves e bem coreografados, e embalada pelo ritmo do jazz que sai do toca-discos do morto, o filme já abre com uma primeira sequência super elaborada, mostrando de cara seu estilo. Interessante notar que esses movimentos tão delicados e femininos contrastam, em princípio, com o tema mortuário e masculino do filme. Mas combinam perfeitamente com sua protagonista, Nurit Iscar (Mercedes Morán) – autora de policiais, afastada da escritura, depois de uma tentativa fracassada de escrever um romance. Ela será a encarregada de cobrir o assassinato para o jornal El Tribuno, dando-lhe assim um viès de ficção.

Mulher forte, inteligente e, ao mesmo tempo, feminina e sedutora, Nurit é também conhecida pelos mais íntimos como Betibú…

Para a cobertura deste assassinato misterioso, vão se juntar à escritora mais dois mosqueteiros: Jaime Brena (Daniel Fanego) e Mariano Saravia (Alberto Ammann). Brena é o mais experiente de todos e, não só cobriu a morte da esposa de Chazarreta, como foi também o último a entrevista-lo antes de sua morte. Já Mariano é o novato no mundo do jornalismo policial, recém chegado “do estrangeiro” onde fez seus estudos. Não tem muita experiência, mas tem aquela discreta arrogância (ou orgulho) tão comum na juventude que se acredita imbatível e que quer fazer tudo diferente. O filme vai, aliás, jogar o tempo todo como os contrastes entre os dois: o velho e o novo; a tecnologia e a tradição; a experiência e a ousadia; o intelectual e o popular; a teoria e a prática, a realidade e a ficção, e por aí vai. Algo bem clichê, por certo, mas que não perturba o bom andamento do filme.

Assim, sob o comando do ex-amante de Betibú, interpretado pelo ator espanhol José Coronado, os três mosqueteiros vão desenrolando esse novelo complicado de mortes sem autores, graças à união de seus “superpoderes”: a experiência, a ousadia e a imaginação.

Betibú é um filme leve – apesar do tema –  que prende do começo ao fim. Tem um ótimo ritmo e excelente trilha. Está muito mais para filme clássico hollywoodiano do que para cinema de arte europeu (para ficar dentro dos clichês). Mas, se olharmos atentamente, há aqui e ali, a marca da cinematografia argentina, que sabe tão bem misturar os dois estilos, produzindo filmes interessantes, fáceis de se assistir, mas que não menosprezam a inteligência do espectador.

O final pode até parecer um pouco confuso, já que explicitamente mistura realidade e ficção, e – como disseram os críticos por aqui – dá um pouco a impressão de que foi resolvido às pressas.  Mas para mim, é justamente esta confusão que dá a graça ao filme.

PRA SE DISTRAIR.

PS. Demorou muito para que “caísse a ficha” que Betibú era uma referência à Betty Boop, personagem de cartoon americano, criada nos anos 1930, e que justamente se mostrava uma moça à frente de seu tempo, independente, sem jamais perder o charme e a feminilidade. Nem mesmo a cena em que o jornalista Brena está em casa assistindo ao cartoon Betty Boop me fez enxergar a conexão. Muitas cenas depois é que tive o estalo… E o jazz tocado no filme, obviamente, ajudou, já que também tem tudo a ver com isso!

 

Las Acacias (2011)

•agosto 26, 2015 • Leave a Comment

Título original: Las Acacias

Origem: Argentina / Espanha

Direção: Pablo Giorgelli

Roteiro: Pablo Giorgelli, Salvador Roselli

Com: Germán de Silva, Hebe Duarte, Nayra Calle Mamani

Como prometido no último post, vou falar hoje de um filme argentino.

O escolhido é o primeiro filme do diretor Pablo Giorgelli e ganhador de vários prêmios por esse mundão afora, entre eles, a tão almejada Caméra d’Or em Cannes 2011.

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Las Acacias é um filme simples, sobre pessoas simples, com roteiro simples, mas que trata, dentre outras coisas, de algo bem complexo: a solidão.

Um filme de pouco diálogo, pouca ação, pouca mudança de cenário, ritmo lento, em que o jogo de atores (expressões, olhares, pequenos gestos) é a grande chave de sucesso. Por certo, uma obra para aqueles que apreciam observar a vida passar, colocando uma lupa em cima das sutilezas da alma humana.

Las Acacias relata o dia em que Rubén (Germán de Silva) – um caminhoneiro que faz o transporte de madeiras entre Asunción, no Paraguai, e Buenos Aires, na Argentina – é obrigado por seu patrão a dar carona para Jacinta (Hebe Duarte), uma jovem paraguaia que vai tentar a vida na capital argentina. Um detalhe importante é que todas essas informações vão nos sendo dadas a conta-gotas, sem nenhuma pressa.

Há anos fazendo esse métier tão solitário, Rubén se tornou um homem de poucas palavras, ranzinza e cheio de manias. Logo, fica muito aborrecido quando descobre que a tal moça a quem deve dar carona chega acompanhada de um bebê de cinco meses, sua filha Anahí (Nayra Calle Mamani). Como vai ser essa viagem? Como sobreviver a essa invasão de privacidade? Seu espaço, seu sagrado espaço, divido agora por três!!!

A partir daí, o filme se transforma num road-movie quase sem escalas. São poucas as paradas, sendo quase todas as cenas filmadas dentro da própria boleia do caminhão. E é neste ambiente huis clos que vamos vendo a transformação discreta dos protagonistas, tendo como instrumento a presença da pequena Anahí, com seus olhares e sorrisos tão puros e cativantes.

Mas não vá esperando um final (nem roteiro) hollywoodiano, nem os papos-cabeças tão recorrentes na cinematografia francesa. O filme de Giorgelli é um filme calado (nem música há!), que observa, rumina, digere e que nos coloca, ao mesmo tempo, em uma posição de observador, de espectador das sutis mudanças que se operam na alma daqueles dois seres. Almas calejadas, que vão, pouco a pouco, se abrindo e reaprendendo a sorrir. Como se observássemos uma flor em câmera super lenta e pudéssemos ver cada detalhe do movimento de suas pétalas…

Las Acacias é um filme delicado, simples, sensível, sutil e profundo. PRA PENSAR.

Reis & Rainha (2004)

•agosto 10, 2015 • Leave a Comment

Título original: Rois & Reine

Origem: França

Direção: Arnaud Desplechin

Roteiro: Arnaud Desplechin, Roger Bohbot

Com: Emmanuelle Devos, Mathieu Amalric, Olivier Rabourdin, Catherine Deneuve, Noémie Lvovsky, Geoffrey Carey

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Uma rainha e vários reis. Um filme que começa em equilíbrio, se descompõe, se despedaça, e vai pouco a pouco sendo reconstruído. Um roteiro original, “labiríntico”, interessante, que surpreende e acaba por emocionar.

Reis & Rainha conta a história de Nora (Emmanuelle Devos), uma mulher na casa dos trinta, mãe do menino Elias, viúva e prestes a se casar com um rico empresário (seu terceiro relacionamento sério). Ela trabalha em uma galeria de artes em Paris e, ao que tudo indica (até pelo tom suave de sua voz), parece levar uma vida tranquila e feliz.

Bem no início do filme, Nora viaja para visitar seu pai em Grenoble e para ver o filho. Ele está cuidando do neto durante as férias. Lá, ela descobre que o velho está muito doente, com poucos dias de vida.

Ao mesmo tempo, vamos vendo, em cenas intercaladas, a história de Ismaël (Mathieu Amalric). Um violonista decadente, culto, que leva a vida de forma extremamente desorganizada (caótica e de certa maneira exótica) e que, por estas e por outras, é internado à força em um hospital psiquiátrico.

Pouco a pouco vamos descobrindo as conexões entre as duas histórias, que se cruzam e entrecruzam em muitos pontos até se mostrarem partes de um todo. Ismaël foi o segundo companheiro de Nora.

Até aí nada de muito original! Porém, a forma escolhida por Desplachin, ou melhor, as formas escolhidas para contar estas histórias é que são, elas sim, originais.

Para começar, a própria montagem paralela – com seus vais-e-vens, e os diversos estilos estéticos utilizados para diferentes cenas, sem que exista aí um padrão reconhecível – surpreende. Na primeira sequência, em estilo de depoimento, Nora olha para câmera, nos olhando nos olhos, apresenta-se e começa a contar sua história, como se estivesse em uma sessão de terapia. A trilha é suave e a iluminação também. Tons claros e ensolarados dominam esta primeira sequência e as outras que se seguem. Depois, esse estilo depoimento é abandonado para só ser retomado na sequência final do filme.

Em seguida, penetramos no universo de Ismaël, um mundo muito mais escuro, perturbado, representado por uma câmera com movimentos abruptos (horizontal e vertical), uma voz mecânica, vinda da secretária eletrônica, cheia de raiva, energia e força, e uma música bem mais vigorosa.

Mas estes padrões não ficam se repetindo ao longo do filme. Eles também vão se intercalando, se misturado, se modificando. Assim como as naturezas dos personagens, em princípio tão distintas, e que vão, aos poucos, mostrando outras facetas.

É verdade que o filme demora um pouco para pegar. Talvez consequência justamente do formato quebra-cabeça, com muitas informações fornecidas de maneira entrecortadas. Ou devido ao excesso de flash-backs que, por sua vez, são também de vários tipos: ora compostos por cenas estáticas, como se saídas de uma peça de teatro, ora registrados por uma câmera inquieta; às vezes, formados por imagens de arquivo; em outros casos, simplesmente sem nenhuma diferença entre passado e presente, ou entre sonho e realidade. Sem falar do turbilhão de temas tratados (solidão, coragem, amor, ódio, rancor, família, verdade, mentira, loucura, razão… tudo está em jog0!) e dos diversos gêneros que o filme incorpora. Trata-se de uma espécie de vale tudo! Mas um vale tudo que dá certo, que atinge o objetivo e que toca.

Pode parecer um samba-do-crioulo-doido (como diria minha mãe), e, de certa maneira, o é. Mas Reis & Rainha é bem interessante, original e há revelações surpreendentes, mostrando que nem sempre somos o que parecemos ser. Ou melhor, que os caminhos que percorremos para alcançar a nossa paz (ou felicidade) nem sempre são os mais floridos nem nobres.

PRA PENSAR

 

Retomando os trabalhos

•agosto 10, 2015 • Leave a Comment

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Depois de mais dois meses sem escrever – consequência de uma mudança de continente repleta de malas, caixas e aventuras – volto hoje à ativa. O que não significa, porém, que vida já esteja totalmente em ordem… ainda falta um bocado de coisas para arrumar e para descobrir! Logo, ainda não posso assegurar uma assiduidade na publicação dos textos. Mas, a ideia é ir pouco a pouco retomando o ritmo, ou, melhor, criando o ritmo de uma nova vida, desta vez com sotaque porteño! Os textos serão agora postados diretamente de Buenos Aires, com grandes chances de girarem em torno de filmes argentinos.

O filme escolhido para esta retomada, no entanto, ainda é europeu. Isso porque, antes de deixar o velho continente, aproveitei para me abastecer de DVDs a fim de não perder o contato nem o hábito.

Só para lembrar, a ideia do site continua a mesma: escrever sobre todos os tipos de filme, sem preconceito de nacionalidade, cor, gênero, época, etc.

Bons filmes!

Bem-Vindo (2009)

•maio 23, 2015 • Leave a Comment

Título original: Welcome

Origem: França

Direção: Philippe Lioret

Roteiro: Philippe Lioret, Emmanuel Courcol, Olivier Adam

Com: Vicent Lindon, Firat Ayverdi, Audrey Dana, Derya Ayverdi, Olivier Rabourdin

Em tempos escurecidos por tantas mortes de imigrantes clandestinos que tentam alcançar o solo europeu, Bem-Vindo não poderia ser mais atual (mesmo que lançado há seis anos).

Convincente, denso, profundo e tão real… o filme de Philippe Lioret traz a triste marca da verdade. Pessoas de todas as idades, de diversas nacionalidades, que andam quilômetros, correm perigos absurdos, são maltratados, discriminados, simplesmente com o intuito de ter uma vida digna. 

Welcome

Bem-Vindo trata da questão da imigração ilegal na França, especificamente em Calais, cidade portuária ao noroeste do país, ponto de contato com a Inglaterra. E por isso mesmo, lugar de grande concentração desta população migrante, o que divide a comunidade entre os que ajudam os ilegais (voluntários que distribuem comida, organizam dormitórios, distribuem cobertores, etc.) e aqueles que os querem bem longe dali.

Lá, o professor de natação Simon (Vicent Lindon), separado, ranzinza e em pleno processo de divórcio, vai se ver envolvido com o drama do jovem curdo Bilal (Firat Ayerdi) de 17 anos. O rapaz, também conhecido como “Bazda” (o corredor) por suas habilidades atléticas, sonha em reencontrar sua namorada em Londres e está disposto a tudo para alcançar seu objetivo. No entanto, o pai da moça é contra o namoro e já está providenciando um casamento para a filha. O tempo urge. E Bilal precisa achar logo uma maneira par atravessar o Canal da Mancha, driblando o controle de fronteira. Porém, o esquema mais utilizado pelos ilegais – escondidos em caminhões, misturados às cargas – é extremamente penoso para o jovem já traumatizado em sua saída do Iraque. Ele decide, então, que vai atravessar a nado. E é este desejo que vai unir seu destino ao de Simon, que passará a lhe dar aulas de natação.

Filmado de forma quase sempre naturalista, optando pelos tons escuros, o filme vai direto ao ponto, assumindo às vezes um ar de documentário. Até porque a situação destes refugiados não é ficção. Tampouco o cenário, que é bem real. Muitas cenas são, inclusive, filmadas no “quai de la soupe” – lugar no porto de Calais onde os voluntários se instalam à noite para distribuir sopa para os refugiados. O filme não se prende, então, às questões estéticas e tampouco às questões políticas (embora seja extremamente político). Trata-se, na verdade, de um filme bem equilibrado, onde o social, o político e o humano estão em perfeita sintonia. A história de Simon e de sua ex-mulher, por quem ele é ainda apaixonado, assim como a própria motivação romântica e inocente de Bilal (reencontrar sua amada), ajudam a dar este equilíbrio, sem deixar, porém, que tome conta do filme, transformando-o em um drama romântico. Os dois romances são apenas um pano de fundo, mas dão leveza a este tema tão sério e grave que é o da imigração clandestina.

O elenco de refugiados é formado basicamente por atores não profissionais. O próprio ator que interpreta Bilal, assim como a atriz que faz sua namorada Mina (Derya Ayverdi), por exemplo, e que são irmãos na vida real, nunca haviam atuado em filmes. Uma fórmula que deu certo, pois junto com o experiente Vicent Lindon o estreante Firat Ayerdi dá show. Ambos são extremamente convincentes em suas interpretações, tocando-nos de maneira quase cruel de tão verdadeiras. O olhar ingênuo, sonhador e esperançoso de Bilal é de cortar o coração de qualquer um. Enquanto que o olhar vivido de Simon – às vezes arrependido, às vezes decidido, às vezes cheio de coragem, às vezes cheio de medo – penetram em nossa alma, mexem pra valer com nossos sentimentos.

O filme levanta, assim, todo um questionamento sobre a política de acolhimento aos imigrantes na França, com seus acampamentos para refugiados, a “catalogação” dos indivíduos, que recebem números pintados em suas peles, as inúmeras associações de voluntários que estão sempre em busca de apoio, mas vivem no limite entre o crime e a boa ação. Questionamento este que pode também ser estendido hoje para países como Itália, Grécia, Espanha, Turquia e tantos outros que recebem a cada dia dezenas de imigrantes fugidos dos horrores da guerra em seus países de origem.

Bem-vindo foi um grande sucesso de bilheteria na França, mas, como era de se esperar, dividiu as opiniões entre os que defendem o direito de ajudar os imigrantes ilegais e aqueles que enxergam problemas em sua presença em solo francês. Seu impacto foi tamanho que chegou mesmo a influenciar a redação de um projeto de lei para descriminalizar a ajuda ao imigrante ilegal, que foi amplamente discutido, porém não aprovado. O nome do projeto de lei: Welcome.

Independente dos resultados, é interessante constatar o poder de mobilização de um filme. Que venham outros assim, capazes de levantar tanta polêmica, de gerar tantas discussões, manifestações, projetos de leis, mesmo que não aprovados… Filmes que nos façam, ao menos, refletir. E que este incrível poder que tem a sétima arte de nos colocar em diferentes papéis  permita-nos também enxergar por outros ângulos uma mesma história.

PRA PENSAR.

 
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