O poder dos documentários

Ouvindo o discurso das ganhadoras do Oscar de melhor documentário de curta metragem deste ano – Period. End of a Sentence. (2018), da iraniana-americana Rayka Zehtabchi – uma frase ficou gravada em minha mente e, imagino, na de muitas outras pessoas também: “Period should end a sentence. Not a girl’s education” [“Period” deveria encerrar uma sentença. Não a educação de uma menina”]. Lembrando aqui que a palavra “period” em inglês significa tanto ponto final como menstruação, possibilitando assim o êxito desse jogo de palavras.

A partir dessa frase e do próprio curta, ao qual assisti logo em seguida, muitos pensamentos relacionados à força do documentário e ao poder que ele tem de propor mudanças, e às vezes até mesmo de realizá-las, me vieram à cabeça. Principalmente levando em conta que, hoje em dia, o espectador comum está sabendo cada vez mais reconhecer o valor desse gênero, por tanto tempo discriminado, apesar de sua origem se confundir com a do próprio cinema (vide os filmes dos Irmãos Lumière!).

Fiquei, então, lembrando de alguns documentários que vi recentemente e que trazem uma mensagem tão forte que acabam por ter o real poder de mudar coisas… Comento rapidamente dois deles :

Born into brothels (2004), de Zana Briski e Ross Kauffman,  é uma coprodução Estados Unidos / Índia, que também levou o Oscar de melhor documentário em 2005, só que na categoria de longa-metragem. O filme mostra a situação degradante em que vivem os filhos das prostitutas de um bordel em Calcutá, em pleno distrito da luz vermelha. Crianças que, em sua maioria, não frequentam a escola ou que, quando vão, acabam falhando por não terem tempo para dedicar aos estudos, já que suas rotinas são preenchidas por uma grande quantidade de trabalhos domésticos. As meninas  não enxergam outro caminho que não o de seguirem os passos das mães, avós e até bisavós, tornando-se elas mesmas prostitutas assim que atingirem a idade “apropriada”. Um filme que tem, portanto, tudo para ser duríssimo (e é), mas que consegue, de alguma maneira, dar-nos um sopro de esperança em meio a um cenário de total horror para nossos olhos ocidentais e de elite.

A diretora do filme, Zana Briski ou Auntie Zana (Tia Zana), como é carinhosamente chamada pelas crianças, é uma fotógrafa inglesa que foi a Sonagachi para fazer um registro fotográfico das prostitutas do Red Light District, quando se deparou com a situação degradante em que vivem os filhos dessas mulheres. Sem alternativa, as crianças vivem ali, no meio do bordel, convivendo diretamente com as drogas e a prostituição. Meninos e meninas sem ambições ou visões de futuro. Zana introduz, porém, o « sonho » em suas vidas! Isso porque, ao perceber o interesse pelos equipamentos usados em seu trabalho – as câmeras fotográficas -, ela decide ensiná-los a fotografar. Coloca uma câmera na mão de cada um (no filme aparecem 8 crianças) e pede para que registrem a vida que vêem diante de seus olhos. Lhes ensina a enquadrar, a compor, a ver a vida sob outro ângulo, a sonhar…

O filme mostra também o périplo da fotógrafa-diretora para colocar essas crianças em internatos, lutando contra o preconceito e a falta de dinheiro. A fotógrafa se sai vencedora em alguns casos e em outros, nem tanto, com algumas crianças chegando a entrar em escolas, mas depois abandonando as instituições.

Apesar dos « fracassos », não se pode dizer que o trabalho de Zana foi em vão! Avijit, um dos meninos mais talentosos do grupo, chega mesmo a ir a Amsterdam participar como jurado mirim de uma conferência promovida pela World Press Forum Foundation, indo mais tarde estudar cinema em Nova Iorque. Um sopro de esperança que nos faz acreditar que, com esforço e amor, dá para se mudar o destino de alguém.

Após a conclusão do filme, Zana ainda criou uma ONG chamada Kids with Cameras, numa tentativa de seguir apoiando crianças em situação de risco, ensinando-as a arte da fotografia e usando o dinheiro das fotos para bancar a educação deles. Um belo documentário com a força para mudar algumas vidas!

The Dancing boys of Afghanistan (2010), do jornalista afegão Najibullah Quraishi,  apresenta uma triste prática (cultura / mania / doença) afegã chamada Bacha Bazi, que consiste na compra de meninos por parte de homens poderosos, com o objetivo de treiná-los para dançarem e cantarem vestidos de mulher para uma plateia masculina. Em muitos casos, depois das apresentações, os meninos são usados para satisfazer os desejos sexuais de seus donos ou de seus convidados. Os meninos que tentam escapar acabam sendo, muitas vezes, assassinados. Uma história de escravidão, pedofilia, homicídio, assédio e de tantas outras monstruosidades das quais o ser humano infelizmente é capaz.

Para contar essa história, Quraishi convence um poderoso empresário do norte do país a deixá-lo penetrar no mundo do Bacha Bazi, alegando estar realizando ali um documentário que tem como objetivo comparar a prática afegã a práticas similares da Europa (mentira!). Dastager, o empresário, que além de ter outros negócios, investe também na compra de meninos, conta com orgulho os detalhes desse mundo de horror. A naturalidade com ele e outros homens poderosos do Afeganistão falam do assunto é de embrulhar o estômago de qualquer um! Nenhuma vergonha, nenhum remorso, nenhum pudor, tudo parece estar dentro da normalidade, apesar de a prática do Bacha Bazi constituir crime, de acordo com as leis do país. Trata-se, porém, de um símbolo de status e de poder. E, embora a polícia reconheça a prática como crime, alguns policiais são flagrados por Quraishi em uma festa em que meninos se apresentam. Eles assistem a tudo calados. Ou pior, se divertindo. Os “donos” desses meninos se orgulham de suas posses, alegando estarem ajudando a essas crianças, tirando-os da miséria e  oferecendo-lhes “uma vida melhor”.

Depois de perceber que havia ido longe demais em suas filmagens, Quraishi decide sair do Afeganistão e apresentar o filme para ONU, em Nova Iorque. Para Radhika Coomaraswamy – a então Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflito Armado e uma das poucas a reconhecerem a existência do Bacha Bazi no Afeganistão -, a única maneira de acabar com essa prática, seria condenar as pessoas que cometem esse crime. Mas existe muita « gente grande » envolvida e a coisa não é tão simples assim de se resolver. Ora, se até na ONU esse é um assunto tabu, que dirá no próprio Afeganistão?

Mas nem tudo está perdido… Shafiq, um menino de 11 anos que aparece no filme sendo iniciado na prática do Bacha Bazi, comprado por Dastager, foge durante as filmagens e depois é encontrado e devolvido a seu algoz. No entanto, com dinheiro arrecadado por Qurasishi e com a ajuda de uma boa alma afegã, o menino é devolvido à família e confessa ao jornalista que sonha em estudar e um dia se tornar médico.

Em meio a cenários de absoluto caos, The Dancing Boys of Afghanisthan e Born into Brothels mostram que é possível ensinar a sonhar e fazer a diferença na vida de alguém. Pode parecer pouco, mas se pararmos para pensar friamente, na pior das hipóteses,  os filmes de Qurasishi e de Briski ajudaram a salvar ao menos duas vidas!

Por mais documentários assim!

~ by Lilia Lustosa on mars 1, 2019.

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